Na Conjur
Resumo: “Em matéria criminal, tudo deve ser preciso e certo para que não haja possibilidade de desencontros na apreciação das provas”.
Quem teria escrito a frase acima? Um erudito do direito processual? Um ministro da Suprema Corte? Não. Quem escreveu foi uma pessoa encarcerada por quatro anos de forma ilegal.
Aos fatos. Um jovem negro (novidade?) de 23 anos escreveu uma carta ao Supremo Tribunal Federal.
A partir dessa carta, João conseguiu ser inocentado. O “detalhe”, vale dizer, é que fora condenado a oito anos de reclusão, e que passou quatro anos na cadeia, em regime fechado, a partir de um processo eivado de problemas.
Como isso acontece? Fácil. Todos os dias. Às vezes descobrimos. O ministro Rogerio Schietti (STJ) e eu temos insistido nisso em diversas oportunidades (aqui, aqui, aqui, aqui, etc…). O Ministério Público não é o defensor dos direitos — antes de ser acusador? Bom, deveria. Mas não é assim.
Precisamos falar sobre Ministério Público e precisamos deixar de precisar falar sobre o Ministério Público. O rei está nu. Resta fazer alguma coisa…
Estou exagerando? Aporrinhando? Bem, aos mais céticos vale a leitura da matéria que desvelou o caso (aqui). De toda forma, eis um esboço do ocorrido:
João, um homem negro de 23 anos, pedreiro, foi condenado a oito anos e dez meses de reclusão por um assalto ocorrido um bairro da periferia de São Paulo. Ainda em 2018, três pessoas foram assaltadas e a Polícia Militar foi acionada para circular pelas ruas. Segundo o boletim de ocorrência, “avistaram um indivíduo correndo em desabalada carreira” e aí entra João. Nesse momento, o homem que estava voltando para casa correndo, em razão da chuva, foi abordado pelos agentes que então tiraram uma foto do rapaz e enviaram por WhatsApp aos colegas que estavam com as vítimas. Elas, então, teriam reconhecido o jovem. Em seguida, João foi preso em flagrante e reconhecido também pessoalmente.
Após um autêntico processo kafkiano com “direito” a flagrante sem “nada de ilícito” com o jovem, tendo negado peremptoriamente a acusação e tendo sido identificado em desacordo com o artigo 266 do Código de Processo Penal[1], João foi vítima do próprio sistema. Valendo frisar também aqui que na delegacia, as vítimas o “reconheceram” novamente, mas ele foi a única pessoa apresentada pelo delegado. Fantástico isso, não?
Em audiência no fórum, aconteceu da mesma forma. Depois de preso e após quatro anos é que João escreveu a carta referida mais acima para o STF, quando conseguiu ser inocentado. Quando entrei na faculdade, o professor me disse: habeas pode ser feito com sangue e em papel de pão…! Foi mais ou menos isso que ocorreu com João.
Mas pensemos agora no Ministério Público. O que fez o fiscal da lei?. Condescendeu com todas as irregularidades no 1º grau. Já no 2º e quando a Defensoria Pública pediu a revisão da sentença, a procuradoria respondeu que, na análise de roubo, “a palavra da vítima assume peso fundamental no contexto probatório para apontar a autoria, sendo certo que, em muitos casos, apresenta-se como única fonte”.
Já no STF, a Procuradoria-Geral da República pediu a confirmação da sentença. Quer dizer: quando alguém do governo comete ilícito, há zelo do zelo do zelo, chegando ao cúmulo de se arquivar representação por prevaricação (ação pública) porque faltaram elementos… Mas o MP não investiga? Já no caso de João, ocorreu o contrário. A total ausência de zelo.
Veja-se: o artigo 226 do CPP determina que o reconhecimento de suspeitos deve seguir algumas regras. E “deve” que não deve ser lido como “pode”. Quando o Código determina um processo e aponta que “proceder-se-á pela seguinte forma”, disso não se pode concluir que quaisquer autoridades possam fazer como querem.
Detalhe: como procurador de Justiça, eu exigia que o 226 fosse cumprido literalmente. Seguir o protocolo. Sob pena de nulidade. Quantos presos injustamente existem com base no reconhecimento bichado?
A carta que João encaminhou ao STF termina assim: “para uma possível condenação tudo deve ser claro como a luz. Condenação exige certeza, e não alta probabilidade”. Bingo, João.
Uma valiosa lição de um jovem rapaz que estudou o CPP enquanto estava preso e que deveria ser compreendida pelo Ministério Público. E pelo juiz que o condenou. E pelo tribunal. Sua sorte foi alguém no STF ter lido sua carta. E a defensoria ter entrado com ação. E os ministros Gilmar, Kassio e Fachin terem julgado favoravelmente ao pleito de João. Mas foi por pouco. Ministro Gilmar ainda falou de uma coisa que muitos esquecem (sem trocadilho): existem falsas memórias. E há que tomar muito cuidado com prova desse tipo. Some-se a isso à precariedade de terem colocado apenas o próprio João para reconhecimento… e temos a tempestade perfeita.
Mesmo sendo uma triste realidade de terrae brasilis que o investigador indica como resultado aquilo que quer provar[2], torna-se importante refletir sobre o papel do Forma Dat Esse Rei no processo penal. Quando trata da liberdade, a forma é a essência do ato. Não seguiu, processo nulo. Ônus é do Estado. Garantias existem… contra o Estado. Com a devida vênia aos votos vencidos. Não dá para usar oração adversativa em processo penal, algo como: o procedimento é ilícito, mas…
Numa palavra final.
O HC foi escrito com sangue e em papel de pão? Não. Mas simbolicamente, sim! Meu professor tinha razão. E cumprimentos à defensora Miriam Aparecida Marsiglia!
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[1] Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. 1. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 71.
Ilustração a partir de “Justiça”, escultura do dinamarquês Jens Galschiot